segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

OLopes é um homem amá- vel e paciente mas, naquele momento, a voz dele reflectia alguma inquietação: – Então, Ricardo, o conto? Ainda não mandaste o conto! Não compreendo e manifesto estranheza: – Tenho mais três dias, não? Ainda estamos a 17! – Qual 17, pá! É dia 20, queremos fechar a revista, só falta o raio do conto. Está escrito, julgo eu. – Nem pensado. – Homem, desembrulha-te. Tens até à meia-noite para me fazeres chegar o conto, via on-line, bem entendido. Despacha-te. Aplica-te. Corro para o pequeno gabinete onde habitualmente escrevo, a tempo e horas. Desta vez sinto-me entalado. Um conto? Assim, do pé para a mão? Detesto escrever pressionado embora reconheça: a pressão gera adrenalina criativa. Desde que consiga concentrarme, o que não é fácil com a baru - lheira da música e vozes que cai do piso de cima, logo haveria de ser hoje a festa da arromba. Tento desviar a atenção mas não consigo, o chinfrim é demasiado intenso e desvairado. Que faço? Subo os doze degraus que me separam do piso acima e primo o botão da campainha. Nada. Nem devem ouvir a campainha, sufocada pelo seu próprio barulho. Então bato na porta – palmadas fortes e reclamativas. A resposta não é o silêncio – é apenas o mesmo baru - lho. E ninguém que apareça a saber porque toco, bato e reclamo. Desço. A meio do trajecto para voltar a casa, páro, mão na cabeça. Um conto? Assim a mata-cavalos? Teria imaginado um enredo se soubesse que hoje é dia 20 e não dia 17. Sento-me de novo à secretária, tapei os ouvidos com bolas de algodão. Pouco atenuam a baru - lheira, mas vamos lá, vamos lá. Talvez uma história de má vizi - nhança, gente sem respeito pela comodidade dos outros. Comodi - dade? Qual comodidade! Eu preciso é de sossego e cabeça limpa para escrever um conto Começo a enervar-me. Chamo a Polícia? Não adianta, dizem-me que até à meia-noite cada um, em sua casa, pode fazer o cagaçal que lhe der na veneta. Espera, parece que abrandaram. Ou é o algodão que me engana? Esperemos um pouco. Terá de ser pouco, faltam cinco para as dez, o limite é a meia-noite. E se eu escrevesse uma historiazinha de amor? Qual amor, no estado de espí- rito em que estou não há amor que triunfe. Mas tentarei serenar. Um momento, o que é isto? Do andar de baixo chega-me um zumbido de panela de pressão a descomprimir sem poupar nos decibéis. Coisa de máquina. Vari nha mágica? Secador de cabelo? Serra eléctrica? Seja o que for, zumbe alto, mau som. Agora desço. Toco a outra campainha, de outra porta. Sem resposta, volta à opção dos murros na madeira. Pedirei delicadamente: cara vizinha, importa-se de desligar essa gaita? Sabe, quero escrever um conto e esse zunido não me deixa nem pensar. É o que lhe digo se a excelentíssima assomar à porta. Mas não assoma. Sinto-me entre dois fogos, baleado por cima e por baixo, é uma conspiração malvada para eu falhar o compromisso de entregar o conto. Para grandes males, grandes remédios. Vou mesmo chamar a Polícia. Olha, nem de propósito: a Polícia chega no elevador, logo dois guardas, aliás um e uma. Obrigado por terem vindo. Salta do apartamento de baixo a vizinha mouca aos meus apelos e grita para a autoridade: – Fui eu que chamei a Polícia. Este senhor anda por aqui a dar murros nas portas, não se aguenta. Fico apalermado, nem sei o que dizer, agora vem o vizinho do andar de cima e aponta-me um dedo acusador: – Eu também chamei a Polícia e fi-lo para me queixar de pancadas insuportáveis na porta do meu apartamento. – Volta-se para mim: – o senhor está bêbado? – Eu? Eu só queria escrever um conto… O duo policial dá o assunto por resolvido, recomenda calma e boa vizinhança, retira-se. Volto ao meu pequeno escritório, espremo as meninges. Um conto? Ora deixa ver que horas são: onze e meia! Tenho meia hora para escrever e enviar um conto? Deixem-me rir, ou antes, deixem-me chorar. No entanto, ainda não atirei a toalha ao chão, como se faz no boxe quando um desgraçado se escusa a levar mais pancada. Esforço-me, bolas, esforço-me, será que não merecia um adiamento no prazo? Prazo… pode ser uma ideia, prazos que crescem, prazos que encolhem. Vamos a isto. Chiça, agora o telefone. Quem me telefone a hora tão inconveniente? Levanto o auscultador e resmungo: – Estou. Soa-me a voz do Lopes: – Ainda bem que estás. Onde estavas? É a quinta vez que ligo e não atendes. – A quinta vez? Ainda não é meia-noite… – Mas estou farto de ligar para te dizer que não te preocupes. Para a página em branco vai uma notícia de última hora, assunto importante. Já tinhas escrito o conto? Minto despudoradamente: – Todinho. – Claro, aí nessa tranquilidade, sozinho em casa, um conto é canja. – Exacto. Às onze já o tinha pronto. Mas, sendo assim, não é preciso enviar, pois não? – Nem terias escrito se atendesses o telefone. Mas tudo bem. – Espero que me paguem o trabalho... ■ O

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