segunda-feira, 18 de janeiro de 2016
Boa surpresa foi ver desocupado
de carros os quatro
metros de rua mesmo à
porta do Café-Bar Sesinando. E de
uma própria e antiga residência,
terceiro andar, no prédio do estabelecimento.
Tentou lembrar-se se
alguma vez tinha encontrado livre
e convidativo aquele pedaço de
chão. Nunca, durante o ano e quatro
meses que morara ali. Só por
este bom começo de dia já tinha
valido a pena.
O senhor Sesinando abriu os
braços e um sorriso espantado
quando o viu entrar:
– Olha quem! Há quanto
tempo, meu amigo, há quanto
tempo não tenho o gosto de lhe
pôr a vista em cima.
Abraçaram-se.
– O que vai ser?
– Um café.
– Só o café? Vai permitir que lhe
ofereça um licor de poejo, este
ainda não conhece.
– Vá lá. Mas uma gota.
Sesinando ardia em curiosidade
mas travava a língua no receio de
ser indiscreto. Por fim, considerou
que não seria abusivo informar:
– A doutora Helena é que vejo
todos os dias. Galão, pastel da
nossa terra e o café.
– Como sempre – disse João
Eduardo.
– Deve estar aí a aparecer, -
Fixou um olhar de inspecção na
porta que tinha na frente e suspendeu
a interrogação que lhe assomou
à boca: vocês falam-se?
Teve resposta quando a cliente
surgiu na moldura da porta, olhou,
pareceu ter respirado fundo e foi
sentar-se diante de João Eduardo.
– Bom dia, disse.
– Olá, Helena, como estás?
– Muito bem, João. E tu?
– Tenho-me adaptado.
– Adaptado?
– Ao princípio custou-me a
adaptação a uma zona da cidade
que me era estranha. E tive saudades,
confesso.
Helena demorou uns segundos,
a meditar como devia entender. Por
fim, quis saber:
– Saudades de quê, de quem,
João?
– Desta rua, do bar, do senhor
Sesinando, do quiosque dos jornais,
um tipo habitua-se e depois
sente a falta. Tu, Helena, não
sofreste essa sensação de perda.
– Não perdi, de facto, nada do
que dizes. O que estranhei foi teres
levado tanto tempo para fazeres o
que vieste fazer hoje: levar o resto
dos teus pertences. Livros, discos, a
gabardina, dois pares de sapatos
pretos… nem sei que mais.
– Quanto a livros e discos,
comprámo-los juntos, escolhe tu,
Helena, os que te agradarem mais.
Podem ser todos. É verdade, tínhamos
aceitado este encontro para
acertar trocas e baldrocas – ignoro
se notaste que, misturado com as
minhas camisas, levei um vestido
teu. O amarelo, cintado, curto, descobria-te
as pernas até ao meio das
coxas.
– E daí? Incomodava-te a visão
das minhas pernas?
– Disparate. Só podia incomodar-me
não ver a metade de cima.
– Deixa-te de lérias. Bem te ouvi
que o vestido era indecente e atraía
demasiadas atenções. Ciumeiras
parvas, João.
– Não foram os meus ciúmes
que nos separaram, mas sim os
teus. A tua bela carinha torcia-se de
desconfiança quando eu saía à
noite para me encontrar com um
amigo. E, de súbito, o estrondo. Eu
nem podia conceber mas foste bisbilhotar
no meu telemóvel e endoideceste
ao ler um sms: “Nove e
meia na minha casa. Espero-te.
Maria Graça”. Não me disseste
uma palavra, acredito que pelo
pudor de confessares a feia atitude
de me policiares o telemóvel. A
partir daí, a nossa casa gelou.
Espantado, o que passei a receber
de ti foram má cara e palavras
secas. Quando pedi explicações o
que ouvi foi que estavas farta de
mim. E insultos. Então, é verdade,
irritei-me e contrataquei furioso.
– Foi horrível. Não podíamos
continuar juntos.
– Sim, dissemos horrores. Eu e
tu. Hoje vim cá porque assim tí -
nhamos combinado, mas pouco ou
nada me interessam os livros, os
discos, acho que pertencem à casa.
Bem entendido, julgo que vou
levar os meus sapatos pretos. –
Calou-se mas, ante o silêncio de
Helena, acrescentou: - A não ser
que tenhas namorado e tão sortudo
que até calça o mesmo número
que eu.
Finalmente, ela riu-se.
– Não tenho namorado, João
Eduardo. E tu? Com quem vives?
– Sozinho com os meus pensamentos.
Esperavas o quê? Uma
Maria da Graça? Olha, menina: só
depois de sair, irado, confesso, me
lembrei que tinhas gritado um
nome sem eu entender. Mais tarde,
passando em revista os sms, percebi
tudo. Estive a ponto de voltar
atrás para fazer luz na tua cabeci -
nha. Mas já nos tínhamos insultado
a um ponto indesculpável. E lá se
foi.
Helena passa as mãos pelo cabelo,
parece ir falar mas logo volta a
um silêncio de embaraço.
– Não compreendo o que dizes,
João, só sei que me atiraste palavras
demasiado cruéis. Sim, também me
culpo, perdi a cabeça. E agora dizes
que depois de saíres fulo, alucinado,
pensaste em voltar?
Pela primeira vez nessa hora de
reencontro, João Eduardo segurou
as mãos de Helena.
– Quando percebi, quis que percebesses.
Bastava mostrar-te o sms
que te tinha desvairado e ligar para
o número de onde provinha.
Saberias, então, que a Maria da
Graça inventada pela tua mente
desconfiada era um equívoco. O
M. Graça, da assinatura era, tão
simplesmente, o Miranda Graça,
um amigo de infância. Ele quis reunir,
num jantar, companheiros de
juventude, desencontrados há
muitos anos. Vou chamá-lo. Agora.
– Não, por favor, desculpa.
Podias ter esclarecido logo, evitavase
a zanga insanável.
– Insanável, Helena?
– Tu não achas?
– Acho que não vou levar os
sapatos, devolvo-te o vestido indecente
e, se estiveres de acordo,
subimos para a nossa casa.
– Queres mesmo, João?
– Não vim cá para outra coisa. ■
Ida e volta
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