segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

J acinto fez-se forte e gesticulou um adeus mas Elvira não conseguiu reter o choro. Lá se iam, no carro de um neto, os ve lhos Tomás e Rosário. Assim emagrecia a aldeia para três habitantes, com Elvira e Jacinto resistirá só o Sebastião Silas, para amarga ironia o menos amigável da povoação que se ia despovoando. Também ele veio à porta para assistir à abalada mas nenhuma emoção se lia naquele rosto magro e duro. – E agora, Jacinto? Aqui ficamos os dois, sozinhos, olhando as casas vazias onde morava gente de estima. Primeiro foram saindo os mais moços, depois os nossos companheiros desde crianças. Uns porque morreram, outros porque se foram para as cidades, deixando a aldeia às portas da morte. Restamos nós. Sentado na cadeira encostada à lareira, o homem enrolava um mínimo de tabaco na mortalha de papel. Tentou animar. – Ainda temos cá o Sebastião, sempre é uma vizinhança. – Esse? – reagiu a mulher – Nem nos fala. No dia em que se lhe meteu na cabeça que as nossas galinhas foram depenicar nas favas dele, só lhe ouvimos os berros e emudeceu. Nem bom dia, nem boa tarde. Nunca mais. Jacinto mexeu as brasas com o canudo de ferro que servia para as soprar e disse: – Um dia passa-lhe. – Passa-lhe? Como, Jacinto? Pois se é mesmo o feitio dele, sempre embezerrado, até quando a aldeia era uma festa de gente raro se atardava numa conversa. Só estará contente quando marcha sozinho para a caça, atroa os ares de tiros e uma vez – há quanto tempo isso foi! – até nos veio trazer uma lebre. Muito me admirou. – E eu – deves também lembrarte – levei-lhe o queijo grande que a nossa Luisinha trouxe quando veio ver-nos. Também podes dizer: há quanto tempo isso foi! – Vou ligar a televisão – disse Elvira. – Para quê? Desde que mudaram o sistema, ou lá como isso se chama, fizeram-nos gastar um di nheirão e ficou pior que dantes. É o progresso. Eles é que sabem. O cigarro ardeu mais de metade à primeira fumaça, mas Jacinto manteve-o entre os dedos calosos. – Acho que já podias dar-me a sopa. – Hoje fiz canja. Tive pena de matar o galo, guardei-o para um almoço de despedida da Rosário e do Tomás. Mas o neto tinha pressa. – Vê as coisas pelo lado bom: deixaram o galo. Entreolharam-se ao ouvirem o súbito roncar de um motor. Coisa espantosa, alguém chegou. Esprei - taram e viram dois estranhos a descer de uma moto. – Devem ter-se perdido – calculou Jacinto. – Ou serão parentes do Se - bastião? – alvitrou Rosário. Saíram à rua a ver em que poderiam ser úteis. – Bom dia – saudou Jacinto – Quem procuram? – O senhor mesmo – disse um. – Somos da Inspecção Sanitária – afirmou o outro. – Inspecção quê? – Sanitária. Temos de ver os canos. – Canos? – riu-se Rosário – Não temos água de canos em casa. Foram entrando. Jacinto estra - nhou que fechassem a porta mas não tardou a perceber: tinha a ponta de uma faca a bailar-lhe no pescoço. – Ouro. Ouro e dinheiro. Tudo e já! – ordenou o mais falador dos assaltantes. Rosário gritou e o outro homem esmurrou-a fazendo-a tombar. – Malvado! – enfureceu-se Jacinto e logo travou a lâmina numa ameaça de morte imediata. Foi então que os quatro se sobressaltaram com o estrondo da porta aberta a pontapé. Na moldura das ombreiras desenhou-se a figura de Sebastião, tenso, de espingarda apontada. – O que se passa aqui? – perguntou em voz, meio doce. A resposta traduziu-se no pânico dos assaltantes, balbuciando súplicas de perdão e correndo como lebres a caminho da moto. Sebastião fez pontaria. Na casa, Jacinto e Rosário abraçavam-se quando ouviram dois tiros. – Deus do céu – murmurou a mulher. Sebastião reentrou na casa e Jacinto, trémulo, não resistiu a perguntar: – Matou-os? O outro riu-se. Há muito, talvez nunca, o tinham visto tão risonho. Depois disse: – Não matei ninguém. Só lhes rebentei os pneus da moto. E agora aí vão eles esgalgados cerro acima, muito terão de dar às pernas por esses matos. Lá se riram os três. – E o amigo Sebastião, que nos salvou desses demónios, não aceita almoçar com a gente? – convidou Rosário. – Olhe que não me cairá mal. E o que é o almoço? – Canja de galo – informou Jacinto. – Seguida de galo. Tostadinho no forno – acrescentou a mulher. – Olha que banquete! – aplaudiu Sebastião. Depois de meditar em silêncio prolongado, o dono da casa disse: – Aqueles canalhas, até o galo nos iam levar. ■ Um galo e dois tiros

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