segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Da casa onde mora até à Segunda Circular vai-se fácil e rápido. Mas atingido esse canal de tráfego que vai enchendo e escoando Lisboa, a marcha é um desespero de lentidão. Gilberto alcançou a faixa do meio, ligou o rádio, espreitou o relógio e o indicador da disponibilidade de combustível. Nada de inconveniente. Aborrecida tinha sido a discussão com a mulher, Flávia, na hora de partirem, cada um à sua vida profissional, em pontos opostos da periferia citadina. Estranhou as buzinadelas de condutores e condutoras que o ultrapassavam, pela esquerda e pela direita. Intrigou-o, ainda mais, perceber que o alvo do banzé era ele, mais concretamente o carro que conduzia, a direito, na faixa do meio, à escassa velocidade que o trânsito ia permitindo. Assustou-se: um furo? Estariam a avisá-lo que um pneu se demitira da sua função por falta de ar? Não podia ser. Dizia-lhe a experiência que um percalço dessa natureza se revela às mãos que seguram o volante. E não eram só ataques de buzina. Os parceiros da estrada dirigiam-lhe olhares zangados, faziam sinais com as mãos e os braços, inclusive com dedos espetados, alguns mandavam que se encostasse à berma, olha, olha, não é canja chegar à berma quando se vai, devagarinho, pela fila do meio, bloqueado pelo cortejo de viaturas quase coladas e com pressa na fila da direita. Quer da direita, quer da esquerda, viravam-se para ele, espantados, ameaçadores, alguns pareciam atirar-lhe insultos. Que diabo é isto? A insignificância de uma porta mal fechada? Nem podia ser o caso. Aquele carro, por sinal comprado por Flávia em terceira mão, dispunha do pequeno luxo de sinalizar qualquer problema desse tipo. Então, mas então? Estaria o tubo de escape a fumegar excessivamente? Torceu-se no assento, o que viu foi o motorista da carrinha à rectaguarda, de punho fechado e expressão facial não menos agressiva. Lembrou-se de ligar à mulher pelo telemóvel e perguntar se teria notado, na véspera, algum problema na condução. Desistiu. Não era boa altura. Ao fim da tarde, no regresso de ambos à casa comum, tudo seria paz e compreensão. Agora estaria ainda fula e convém evitar conversas com pessoas fulas. No final do dia, talvez ela ainda soltasse um brando queixume mas não tardariam a rirse. Como de costume. O problema de hoje deveu-se a ele ter deixado o carro na oficina, para a revisão, e não podia passar sem o transporte individual, tantas eram as voltas que teria de dar. Então, decidira: “Querida, vou levar o teu carro.” Ideia mal recebida: “Ai isso é que não levas” – ripostou a senhora, e explicou: “Depois de sair do escritório, e bem longe fica, tenho de ir a casa da minha mãe, que fez uma tachada se arroz doce para nós, e depois visitar a avó Luciana que está com a gripe.” Discutiram. O mal das discussões é a tendência para azedarem. Homem esclarecido, ele calou-se, entrou no carro e apoderou-se da chave de ignição. Mas não se precipitou: espera, esquecia-me do carregador do telemóvel, não tarda a ser necessário, o visor mostra só um risquinho. E a papelada que teria de entregar. Levaria alguns minutos a juntar os papéis dispersos, a desarrumação dele não tinha emenda. Boa ideia, pensou, foi ter sacado a chave de ignição. Flávia continuava junto do carro, estática e teimosa, Gilberto não resistiu a sorrir, monologando: “Assim não vai a lado nenhum” . Desceu. Fingiu não reparar na cara de pau da mulher e adoçou a voz: “Até logo, amorzinho”. Sem resposta. Paciência. Ao fim da tarde tudo voltaria à normalidade. Sobrepondo-se agora à ofensiva das buzinas, ouviu a sirene de um carro da Polícia. E junto à janela, outro polícia, de mota, mirava-o, carrancudo. Detiveram o trânsito na faixa direita e, com gestos imperativos, encaminharam-no para a berma. Obedeceu, que remédio. Exigiram documentos – “não tenho aqui o registo de propriedade, é o carro da minha mulher”, balbuciou – e ouviu a ordem para sair. Saiu, desorientado. O mais corpulento dos guardas colocou-lhe uma manápula no pescoço e conduziuo à traseira do veículo. Sofreu, então, o choque do absurdo. Preso com fita-cola, voltas e voltas de fita-cola, um cartão à largura do porta-bagagem acusava: ATENÇÃO, ESTE CARRO FOI ROUBADO. Meteram-no no transporte da Polícia, um agente tomou lugar ao volante da viatura denunciada. Seguiram em cortejo para a esquadra. Nova e não menor surpresa: Flávia, em carne e osso, ali estava, risonha, muito solta, à conversa com o chefe. Já apresentara a documentação, dela própria e do carro sua pertença. E ria-se, ria-se muito, ao identificar o querido esposo, explicando em todo o redor que ele teria sido vítima de uma partida dos amigos, uns pândegos, uns brincalhões. Toda a esquadra se tornou riso. Ainda assarapantado, o detido cravou nos olhos da mulher um olhar de fúria. Por mais que tentasse, não conseguia sequer o esboço de um sorriso. Enfim, talvez logo, ao fim da tarde. ■ O

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