domingo, 12 de abril de 2020

UM SONHO
Todos estes dias de isolamento de “ fique em casa “, tem mexido com o meu metabolismo, havia várias noites que não dormia de jeito, até um certo limite não é de estranhar, devido à idade, dorme-se muito menos.
Ontem à noite como achei que já eram demais as noites em claro, quase sem pregar olho, pedi à mulher meio comprimido “ Valdispert “, que tomei e rapidamente adormeci. Pela madrugada acordei, como é meu hábito liguei o radio, gosto de ouvir os programas nocturnos. Estavam a falar da Figueira da Foz, seus usos e costumes, festas e tradições, entrevistaram pescadores, entusiasmei-me e pensei: hoje vou ser um desregrado, vou almoçar à Figueira, onde de certeza não vou encontrar alguém conhecido, com quem tenha que falar sobre o terrível vírus covid 19, que nos está seriamente a atacar.
Levantei-me e fui ao computador, vi os horários dos combois, escrevi um bilhete para a mulher, coloquei-o na mesinha do corredor. Peguei na bolsa com os documentos, levei o carro para Meleças, sem qualquer observação comprei bilhete, de ir e volta, com redução  para a Figueira, perguntei se demorava muito, o senhor disse-me: “ está a chegar e vem na hora”.
Entrei na carruagem do meio, era uma composição só de três carruagens, estava completamente vazia, procurei o lugar que me agradou junto à janela, levantei a cortina do meu lado direito, as casas e as árvores corriam velozes em sentido contrário, tudo ficava para trás. Duas ou três estações mais à frente, começaram a entrar passageiros, sem uma palavra sentavam-se, sacavam do telemóvel e era só para esse pequeno visor que olhavam, eu observava aquele senário degradável, à minha frente no interior da carruagem, mas deliciava-me olhando para o exterior, as casas, as árvores, as flores, os animais, os verdejantes campos, tudo continuava  a correr velozmente para a retaguarda.
Uma viagem que costuma ser demorada, desta vez pareceu-me rápida, algumas paragens nem dei por elas e nem o revisor apareceu.
Tomei o pequeno-almoço perto da estação, ao balcão dum café agradável café, que estava cheio, todas as mesas ocupadas. A manhã estava solarenga, o sol já raiava, estava bom para umas fotos, mas a máquina tinha ficado em casa, registá-las com o telemóvel, não me dá pica, a pé dirigi-me em passeio para o mercado, adoro ver aquelas bancas de pedra branca, cheias de lindo peixe fresco, frutas de bom aspecto e delicioso sabor, lindas flores de todos as cores, as frescas hortaliças e a simpatia de todas aquelas vendedeiras, umas mestras escorreitas no diário falatório, aquela ginja de Óbidos com elas, servida naqueles copos de vidro grosso, não sei ao certo quanto tempo lá estive, nem quantas voltas dei por aqueles corredores, sei sim que adorei, dei por mim eram horas de almoço.
Saí e dirigi-me à casa do Sporting Clube de Portugal, pertinho dali, onde iria degustar as deliciosas sardinhas assadas com batatas cozidas e salada, às quais já ia destinado. Ao entrar estranhei tudo estava diferente, mais espaçoso, só estavam a servir refeições no rés-do-chão, tinham um empregado a receber os clientes, que muito delicadamente me perguntou quantos eramos, sou só eu respondi, espere um momento por favor, foi ao fundo da sala, onde estava uma mesa, também só com uma pessoa, uma senhora, com quem ele falou, verifiquei depois muito bem vestida e bem maquilhada, que esperava para ser servida, o empregado veio e perguntou-se se eu não me importava de ir para aquela mesa, respondi que não e aproveitei pedi o prato, acompanhou-me até à messa, pensei como estava diferente o atendimento naquela casa.
Ao chegar à mesa, pedi licença e apresentei-me. O normal seria aquela simpática senhora, conceder permissão para me sentar e quando muito se apresentar, mas não para meu espanto, ela me olhando bem nos olhos, solta uma sonora e alegre gargalhada, pondo toda a sala a olhar para nós, enquanto se levantava e me envolvia num imaginário e apertado abraço, que disfarçadamente retribuí. Não me conheces? Disse ela. Não, se te conheço não me recordo quem és, nem de onde é, enquanto me abraçava ia-me dizendo o nome, fez-se luz na minha mente, de facto nunca a tinha visto em pessoa, só em fotografia.
Também ela ia almoçar sardinhas, fomos servidos ao mesmo temo.
Enquanto íamos degustando as deliciosas sardinhas, tentávamos arrumar o passado de cinquenta e tal anos.
Começando ela por dizer-me: deixaste de me escrever. Não, não deixei de te escrever, as últimas duas cartas endereçadas para ti …. Seara Brasil, vieram devolvidas, com indicação, desconhecida na morada. Desbobinou de livre vontade, o que quis, lhe apeteceu e lhe deu prazer, disse-me que tinha casado, agora é viúva, tem três filhos, um estabelecido no Brasil, ela vive com os outros dois e netos, perto do Fundão onde eles se estabeleceram, dedicam-se à panificação e pastelaria, como o negócio teve grande quebra dada a situação que se vive, aproveitou para ir conhecer a orla marítima. Parecendo-me que estava a ser sincera, também eu com a pulga atrás da orelha, lhe contei algo, nada de importante.
Na casa do Sporting, não estavam a servir café às mesas, saímos e tomamos o café na pastelaria em frente, sendo o mesmo bem regado, para mim uma macieira, para ela uma amêndoa amarga.
Estava na hora de irmos fazer o que ambos tínhamos planeado. Contratamos um TUC-TUC, combinámos a volta para terminar na estação dos comboios, o dela era primeiro. Partimos percorrendo toda a marginal para vermos o mar, que estava calmo, quase sem ondas, creio que se diz mar chão, percorremos algumas ruas e as praças mais emblemáticas, o motorista era um bom guia, saímos para os arredores, de vez em quando o tuc-tuc para ele nos dar algumas explicações. Enquanto isto íamos dando uns toques no nosso passado escrito e o encontrámo-nos ali. Ela sentira saudades de ver o mar, antes de enviuvar, eles estavam estabelecidos perto do mar, eu também falei da minha razão de estar ali.
Chegámos, disse o motorista, fiz questão e paguei, no café ao lado lanchamos, ela um café e um pastel de natas, eu como a fome era pouca uma mini preta e um pastel de bacalhau, a hora dela estava próxima, fomos para a estação, fiz-lhe companhia até ela partir, quinze minutos depois, no lado contrário pararia o comboio que me traria de regresso a Meleças, atravessei para o outro lado e aguardei, enquanto esperava lembrei-me que nem os números do telefone tínhamos trocado.
O comboio chegou, voltei a entrar na carruagem do meio, que estava bastante cheia, uma linda jovem que vinha num dos lugares reservados, também junto à janela, de frente e do lado direito, simpaticamente prontificou-se e deu-me o lugar, o sol estava baixo e incomodava-me, o que raramente me acontece, pedi licença fechei o cortinado, não dei por passar pelas estações.
Lembra-me de acordar, olhar para o lado direito, onde na mesa-de -cabeceira, brilhava o visor amarelo do relógio, indicando doze horas e cinco minutos.
Rio de Mouro 12-04-2020
Francisco Parreira.

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