segunda-feira, 30 de março de 2015
Da casa onde mora até à
Segunda Circular vai-se
fácil e rápido. Mas atingido
esse canal de tráfego que vai
enchendo e escoando Lisboa, a
marcha é um desespero de
lentidão.
Gilberto alcançou a faixa do
meio, ligou o rádio, espreitou o
relógio e o indicador da
disponibilidade de combustível.
Nada de inconveniente.
Aborrecida tinha sido a discussão
com a mulher, Flávia, na hora de
partirem, cada um à sua vida
profissional, em pontos opostos da
periferia citadina.
Estranhou as buzinadelas de
condutores e condutoras que o
ultrapassavam, pela esquerda e
pela direita. Intrigou-o, ainda
mais, perceber que o alvo do
banzé era ele, mais concretamente
o carro que conduzia, a direito, na
faixa do meio, à escassa velocidade
que o trânsito ia permitindo.
Assustou-se: um furo? Estariam a
avisá-lo que um pneu se demitira
da sua função por falta de ar? Não
podia ser. Dizia-lhe a experiência
que um percalço dessa natureza se
revela às mãos que seguram o
volante. E não eram só ataques de
buzina. Os parceiros da estrada
dirigiam-lhe olhares zangados,
faziam sinais com as mãos e os
braços, inclusive com dedos
espetados, alguns mandavam que
se encostasse à berma, olha, olha,
não é canja chegar à berma
quando se vai, devagarinho, pela
fila do meio, bloqueado pelo
cortejo de viaturas quase coladas e
com pressa na fila da direita.
Quer da direita, quer da
esquerda, viravam-se para ele,
espantados, ameaçadores, alguns
pareciam atirar-lhe insultos. Que
diabo é isto? A insignificância de
uma porta mal fechada? Nem
podia ser o caso. Aquele carro, por
sinal comprado por Flávia em
terceira mão, dispunha do
pequeno luxo de sinalizar
qualquer problema desse tipo.
Então, mas então? Estaria o tubo
de escape a fumegar
excessivamente? Torceu-se no
assento, o que viu foi o motorista
da carrinha à rectaguarda, de
punho fechado e expressão facial
não menos agressiva.
Lembrou-se de ligar à mulher
pelo telemóvel e perguntar se teria
notado, na véspera, algum
problema na condução. Desistiu.
Não era boa altura. Ao fim da
tarde, no regresso de ambos à casa
comum, tudo seria paz e
compreensão. Agora estaria ainda
fula e convém evitar conversas com
pessoas fulas. No final do dia,
talvez ela ainda soltasse um brando
queixume mas não tardariam a rirse.
Como de costume.
O problema de hoje deveu-se a
ele ter deixado o carro na oficina,
para a revisão, e não podia passar
sem o transporte individual, tantas
eram as voltas que teria de dar.
Então, decidira: “Querida, vou
levar o teu carro.” Ideia mal
recebida: “Ai isso é que não levas”
– ripostou a senhora, e explicou:
“Depois de sair do escritório, e
bem longe fica, tenho de ir a casa
da minha mãe, que fez uma
tachada se arroz doce para nós, e
depois visitar a avó Luciana que
está com a gripe.”
Discutiram. O mal das
discussões é a tendência para
azedarem. Homem esclarecido, ele
calou-se, entrou no carro e
apoderou-se da chave de ignição.
Mas não se precipitou: espera,
esquecia-me do carregador do
telemóvel, não tarda a ser
necessário, o visor mostra só um
risquinho. E a papelada que teria
de entregar. Levaria alguns
minutos a juntar os papéis
dispersos, a desarrumação dele
não tinha emenda. Boa ideia,
pensou, foi ter sacado a chave de
ignição. Flávia continuava junto
do carro, estática e teimosa,
Gilberto não resistiu a sorrir,
monologando: “Assim não vai a
lado nenhum” .
Desceu. Fingiu não reparar na
cara de pau da mulher e adoçou a
voz: “Até logo, amorzinho”. Sem
resposta. Paciência. Ao fim da
tarde tudo voltaria à
normalidade. Sobrepondo-se
agora à ofensiva das buzinas,
ouviu a sirene de um carro da
Polícia. E junto à janela, outro
polícia, de mota, mirava-o,
carrancudo. Detiveram o trânsito
na faixa direita e, com gestos
imperativos, encaminharam-no
para a berma. Obedeceu, que
remédio. Exigiram documentos –
“não tenho aqui o registo de
propriedade, é o carro da minha
mulher”, balbuciou – e ouviu a
ordem para sair. Saiu,
desorientado. O mais corpulento
dos guardas colocou-lhe uma
manápula no pescoço e conduziuo
à traseira do veículo. Sofreu,
então, o choque do absurdo. Preso
com fita-cola, voltas e voltas de
fita-cola, um cartão à largura do
porta-bagagem acusava:
ATENÇÃO, ESTE CARRO FOI
ROUBADO.
Meteram-no no transporte da
Polícia, um agente tomou lugar ao
volante da viatura denunciada.
Seguiram em cortejo para a
esquadra.
Nova e não menor surpresa:
Flávia, em carne e osso, ali estava,
risonha, muito solta, à conversa
com o chefe. Já apresentara a
documentação, dela própria e do
carro sua pertença. E ria-se, ria-se
muito, ao identificar o querido
esposo, explicando em todo o
redor que ele teria sido vítima de
uma partida dos amigos, uns
pândegos, uns brincalhões.
Toda a esquadra se tornou riso.
Ainda assarapantado, o detido
cravou nos olhos da mulher um
olhar de fúria. Por mais que
tentasse, não conseguia sequer o
esboço de um sorriso. Enfim,
talvez logo, ao fim da tarde. ■
O
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