sexta-feira, 4 de março de 2016

Sua Excelência o Galo
Ao contrário do que diz o povo, não é qualquer um que canta de galo, porque só canta de galo quem é galo. E ser galo é um projecto de vida a tempo inteiro, que exige do próprio um permanente exercício de exaltação da mais pequena ou insignificante característica que possa parecer-se com uma virtude.
Um galo colocado no poleiro de uma empresa vai pensar que está numa capoeira e apostará permanentemente em mostrar a plumagem, fazer ouvir a cantoria, impressionar as galinhas e assustar os concorrentes.
Por definição, um galo empresarial aparece sempre muito engomado, a caminhar na ponta dos pés e olhando para o infinito como se estivesse a posar para a História ou para o pincel de Velasquez.
Particularmente anedóticas são as suas aparições televisivas ou os seus discursos formais, por se tratarem de intervenções geralmente desproporcionadas no tom e demasiado livres no conteúdo. A sua maior preocupação é parecer bem e ser fluente, ainda que discorra com incontrita ignorância ou notória superficialidade sobre tudo e mais qualquer coisa.
Não raramente, o galo é brilhante. Quer isto dizer que o galo brilha realmente, sobretudo quando se veste de cerimónia e cede à tentação do colorido. Ouvi-lo cantar até dá gosto, desde que não desafine e não exagere no gargarejo. Apreciar a sua capacidade para cobrir com gesto grave ou ademanes gráceis a vacuidade intelectual é, só por si, um espectáculo estimulante.
O galo empresarial português é um galo típico – tem sempre muitos projectos em carteira, planeia profundíssimas revoluções sociais, anuncia conquistas futuras com exagerada antecipação, mas fá-lo porque quer assegurar que ninguém vai assustar-se com o estrondo do seu fracasso.
No íntimo, o galo português é um herói em projecto, alguém que sabe perfeitamente o que deveria fazer para ser Grande, mas que prefere deixar aos outros a oportunidade de realizarem as minudências da vida sem a sua devastadora competição. Naquela linha de raciocínio do «agarrem-me, senão vou-me a eles», o nosso galo é um clássico da bazófia, um mártir das dificuldades invisíveis, uma vítima da conspiração universal.
Na gestão das empresas portuguesas os galos medram no primeiro ano do mandato e estoiram nos seguintes, indo estiolar até à reforma em discreto poleiro, depois de coleccionarem histórias mal contadas e números desleixados.
Costumam dar bons entertainers de sopeiras e secretárias, podendo também ajudar como bibliotecários ou relações públicas em fundações e obras de benemerência. Mas nunca os utilizem para gerir negócios sérios, porque correm o risco de terem a vossa reputação manchada pelos tremeliques da crista do vosso protegido.
O galo lusitano é uma ave doméstica, não é um galo selvagem armado de esporões e preparado para sangrar adversários num semi-círculo desenhado no terreiro manhoso da clandestinidade. Gosta de comida a horas e água lavada e se tiver de esgravatar fá-lo-á com luvas brancas e pose científica,como se o esforço carecesse de manual técnico.
O galo português é egoísta, antipático, arrogante e briguento. Tanto discute a validade de um golo no futebol como a honra da vizinha no café da vila. Completamente desinteressado das opiniões e sentimentos alheios, fere susceptibilidades como quem golpeia pecados com a cruz. É um radical
chique ou, simplificando, um malcriado.
Consequência natural da sua personalidade, o galo é desconfiado, nomeando-se a si mesmo como melhor amigo. Tem, por isso, alguma dificuldade em ouvir a opinião dos outros ou atender a argumentos de bom senso, sobretudo quando lhe parece que o comentário pode conter uma censura à sua pessoa.
Por impulso e por inconsistência, o galo é um gastador. Centrado na aparência e no efeito social da acção, o galo desperdiçará o dinheiro que lhe vier ao bico com enorme rapidez e total falta de razão.
Perderá o seu e o alheio por erro e vaidade, incapaz de notar a iminência do desastre por miopia e tolice.
É provável que o galo aprecie a companhia de galinhas, sobretudo se elas lhe retribuírem uma imagem de cavalheiro amável e galanteador, sem procurarem o confronto intelectual ou detectarem as insuficiências.
No mundo empresarial português há ainda que distinguir dentro da espécie três categorias: os galos propriamente ditos, os galarós e os garnizés.
Os galos propriamente ditos são aqueles que, apesar de todos os defeitos, conseguem aguentar-se fora da grelha ou da panela, envelhecendo suficientemente as carnes para poderem persistir nas tolices. Muitos acabam por transformar-se em aves relativamente divertidas ou simpáticas, conquistando lugares decorativos nas capoeiras da abundância, com proprietários tolerantes.
Os galarós são os galos jovens que começam como grandes esperanças, rapidamente se promovem a génios e repentinamente caem às mãos de cozinheiro impiedoso, que deles faz canja saborosa ou churrasco perfumado.
Os garnizés são galos que envelhecem mas não crescem, mantendo eternamente aquele ar gaiato e progressivamente mais ridículo, de quem não se dá conta que há uma contradição crescente entre o seu tamanho e a dimensão do Mundo.
Em conjunto, galos, galarós e garnizés asseguram um ambiente razoavelmente kitch em alguns dos mais importantes conselhos de administração e ministérios da Pátria a que chamamos Portugal.

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