Do mural de Alexandra Paixão
Partilho este post de Francisco Almeida, o seu testemunho factual de vida, que considerei digno de se ler. Eu sou mais velha do que ele, venho também de origens humildes, de gente que trabalhou arduamente a vida inteira para que nas suas famílias não se passasse fome nem privações materiais; pessoas que mereceriam mais respeito pelo exemplo que constituiram perante os seus descendentes do que o que receberam, e nem falo do Estado. Desde os anos sessenta que começara a emigração ´a salto` numa fuga compulsiva à miséria; a desertificação do nosso interior para os grandes centros urbanos chegou muito depois. Para que conste, isto (e ainda bastante pior do que isto) foi real para a grande maioria dos pais, avós e bisavós dos que hoje ainda vivem - e não me reporto aos salazarentos, que eu a esses desinfelizes nem cartão passo, e sim aos que olham para trás e se envergonham de onde vieram, tentando compensar essa ´inferioridade` sentida a ocultas com caganças ridículas na fachada social.
"Há coisas que nunca saberemos
Salazar e Marcelo caíram o poder não caiu na rua e o Salgueiro Maia não foi como o Yevgeny Prigozhin, o capitão de abril, chegou ao terreiro.
Embora na urbe, na selva de betão não se tenha notado substancial diferença no interior foi do dia para noite.
Não sabemos como estaríamos se a ditadura continuasse, temos palpites sobre qual seria o estado da nação se tivéssemos seguido a política do orgulhosamente sós ...
Mas isto tudo para dizer que, numa região já por si pobre e dotada de quase nenhuns recursos entregue ao latifúndio em que quase todos os homens haviam partido para a guerra e com os restantes a diferença para o que se fazia nas colónias era não haver sanzalas nem troncos notou-se a mudança no imediato e a longo prazo.
Nasci em liberdade mas assisti à mudança, não a imediata mas a que veio embrulhada no papel da liberdade.
Nasci no Alentejo profundo, numa aldeia da margem esquerda do Guadiana, sobretudo centrada numa economia agrícola, entre o trigo e o olival e uma pouca pecuária..
Não havia saneamento básico, logo as casas de banho eram coisa dos senhores abastados, o banho era numa bacia inicialmente e à medida que fui crescendo passou a ser um alguidar, as necessidades eram no penico quando não era possível era no quintal ou em barracas improvisadas para o efeito.
As ruas eram terra batida e não se sabia sequer o que era o luto rodoviário que o alcatrão nos trouxe, a rua principal era calçada irregular.
Passava-se fome na maioria das casas e tive a sorte de nascer no seio de uma família digamos remediada para a altura, basicamente havia sempre que comer.
Com regras e limitados à existência dos bens algumas vezes, muito pouco com recurso a fiado, mas sem dificuldades de maior.
A minha avó fazia pão e havia sempre um porco um borrego ou um chibo ou então uma galinha para comer ...
Mas a maioria das casas não tinha energia elétrica nos primeiros anos que tenho memória a conservação era basicamente a salgadeira e as carnes transformandas, principalmente o porco, o borrego e o chibo eram guardados para as festividades pois seriam consumidos por toda a família e num curto espaço de tempo, as galinhas essas eram ocasionalmente consumidas com regras para que houvesse possibilidade de comer todo o ano.
O peixe chegava à aldeia com vários dias de gelo e em caixas de madeira num carro de burro com várias centenas de moscas a segui-lo.
Sardinhas, carapaus e às vezes cação e a seguir à época das feiras o tradicional peixe seco.
O restante era gastronomia adaptada com o que estava disponível.
Lembro-me de o meu pai ter comprado um frigorífico que ainda esteve ali parado um ano até consegui ter eletricidade.
Fiz muito trabalho de casa e li muito livro à luz do candeeiro a petróleo ou da lamparina de azeite.
O meu primeiro iogurte comi com 10 aninhos e bananas era quando a minha mãe ia a Serpa que comprava na Ti Maria Do Pau uma loja que ficava junto à paragem da camioneta.
Dormi ainda muito tempo num colchão de palha e mais tarde de lã e por fim de esponja ...as molas vieram uns anos depois.
Comi muito peixe apanhado por mim, pássaros fritos que era eu que matava, pernas de rã, ouriços, tudo era alimento e uma ajuda em casa.
Os meus avós maternos lembro-me bem ainda tinham uma parte do chão da casa em terra batida com ocre vermelho, de resto imperava as baldosas de barro.
Muita coisa mudou para melhor.
Viveu-se muito mal no pós 25 de abril e eu imagino as dificuldades do pré 25 de abril.
Então veio o começo do êxodo e começaram a partir agora um depois outro um grupo e o destino era principalmente França no início e mais tarde Suiça e começou uma história de busca de uma vida melhor.
Aos poucos veio a eletricidade o saneamento básico os confortos mas foram-se as pessoas.
Vivemos melhor hoje é um facto, mas ficámos desprovidos de gentes que trocaram progressivamente estas terras por outras que lhes ofereceram uma melhor vida.
Hoje na maioria dos casos nasce-se aqui, vai-se lá para fora toda uma vida e vem-se morrer à terra, pois poucos são os que regressam em meia idade a maioria tenta voltar reformada.
Nunca saberemos como seria se o capitão não tivesse ocupado o Terreiro do Paço ... se tivéssemos seguido outro caminho,imaginamos que seria pior e é tudo.
A minha geração viveu a mudança e o progresso vertiginoso, foi-se adaptando a tudo ...."
Texto entre aspas de Francisco Almeida.